SUPERSTIÇÕES?
BULHÃO PATO E HERCULANO
Fleming de OLiveira
Bulhão
Pato (fevereiro de 1893) escreveu, do Monte da Caparica, este texto delicioso
que não resisto em transcrever:
Alexandre Herculano, quando via na sua mesa
um pão com o lar para cima, ia muito depressa e voltava-o. Nos primeiros
tempos que estive em sua casa notei esta circunstância e olhei um dia para ele
interrogativamente.
Ele, sorrindo, respondeu:
–Em criança disseram-me que um pão, posto
assim, era sinal de morte na família. Não lhe resisto; a educação é uma grande
natureza.
Eu era muito rapaz; o caso repetia-se,
sempre que havia pão voltado, e tomei-lhe o hábito. Herculano meteu-me este
enguiço.
Outro-e por fatais exemplos!-foi o meu
co-irmão, o Dr. José de Avelar, que mo sugeriu.
Em 1860 estávamos no Vale de Santarém,
Francisco Maria Bordalo, D. Diogo de Vasconcelos, José de Avelar e eu, em casa
de Rebelo da Silva. Um filho da viúva Caldas, que fora meu companheiro no
colégio do Quelhas, convidou-nos para jantarmos numa propriedade sua –
Malpique. Soberba propriedade.
Num dia deslumbrante, partimos todos, a
cavalo, lezíria dentro, para a quinta do nosso hóspede. Nos tapizes de relva os
malmequeres e as margaridas; nos trigais tenros e lanciolados as âmbulas
purpurinas das papoilas e toda a campina encrespando-se suavemente, como o mar
chão e esmeraldino, arrepiado por uma leve aragem. O Tejo, que trasbordava com
a invernia, enchendo as valas, alongava os braços prateados pelas ínsuas, sob
os salgueiros recarvos e já frondeados. O ar vivo, as planuras do campo,
animadas pelas manadas de poldros relinchantes, de novilhos brincões, e de
toiros, de cabeça alta, alegres e mansos na sua plena liberdade; o globo
rutilante do Sol, iluminando a imaculada esfera, produziam em todos nós o
desafogo e bem-estar que, mais do que em parte alguma, se dá no fecundo regaço
da natureza! Chegou a hora do jantar, que o nosso estômago acusava já de
tardia. Quando íamos sentar-nos à mesa, José de Avelar-tinha ele então os seus
vinte e cinco anos e era um raro exemplar de beleza masculina, tão viril como
correcta-disse para Bordalo e para mim:
–Olhem que somos treze!...
Bordalo que, apesar de marinheiro, não tinha
nenhum desses preconceitos, respondeu, rindo:
–Pois tu acreditas nisso, José?
–Não acredito; mas que queres...
E sentou-se visivelmente perturbado. O
jantar correu alegre. O sogro de Rebelo da Silva, fidalgo no berço e no
carácter, fazia parte dos convivas. Passava dos sessenta, porém, sadio e
robusto; Bordalo não tinha ainda quarenta anos e não acusava lesão alguma.
Antes de completo o ano, morria o sogro de Rebelo e, a pouco trecho, Francisco
Maria Bordalo.
José de Avelar dizia-me:
–Olha que éramos treze em Malpique!
Deram-se-nos depois mais casos análogos; mas
vamos ao derradeiro.
Alexandre Herculano fazia anos a vinte e
oito de Março. Nesse dia, os seus amigos mais íntimos iam jantar com ele. Em
1877, na véspera dos anos do mestre, João Pedro da Costa Basto e eu chegámos a
Vale de Lobos. No dia seguinte, apareceram Henrique Augusto de Sousa Reis, o
marquês de Sabugosa e José de Avelar. Havia mais convivas. A srª D. Mariana
Hermínia Meira, mulher de Alexandre Herculano, desde pela manhã que sentira os
rebates de uma enxaqueca, a que era atreita, e que lhe não passava senão ao
cabo de vinte e quatro horas largas. Próximo ao jantar o ataque aumentava. Uma
hora antes de irmos para a mesa, Avelar disse a Herculano:
–Olhe que somos treze!
O mestre, que tinha o enguiço do pão voltado,
como homem justo em tudo respeitava os dos outros.
–O pior, meu amigo, é que não vejo agora que
volta se lhe dê.
A senhora de um lavrador vizinho do Vale,
senhora simpática e íntima da casa acudiu logo:
–Tudo se arranja facilmente. Eu mando à
quinta buscar a minha filhita.
Assim se fez. Descemos à casa de jantar.
Ainda se não tinha servido a sopa, quando vimos, no rosto da dona da casa, que
aumentava o seu mal-estar, e todos, com seu marido, instámos para que se
retirasse. Era apenas uma indisposição, que não dava o minimo cuidado, e o
jantar principiou alegre; mas o dr. José de Avelar, que se assentara ao pé de
mim, disse-me, muito baixinho:
–Sempre ficámos treze!
Alexandre Herculano esteve esplêndido, como
nos dias da mocidade. Mais uma vez todos o admirámos comovidos! Demorou-se a
palestra até tarde. O marquês de Sabugosa, Sousa Reis e dr. Avelar partiam no
comboio da madrugada. João Pedro da Costa Basto e eu ficámos por mais dois
dias. No último dia, ao jantar, contei umas anedotas, que deram no goto ao
mestre. Riu, do riso franco e prolongado, que lhe era peculiar. Chegou o trem
que devia conduzir-nos ao comboio da tarde. Herculano, na melhor disposição de
espírito, veio acompanhar-nos até à calebe. Quando o carro partiu, uma nuvem
envolveu subitamente o espírito de João Basto, e tal foi ela, que a muito custo
conteve as lágrimas.
–Se não fosse-disse ele-a necessidade
impreterível de estar amanhã em Lisboa, voltava para trás.
Ruim pancada lhe bateu o coração! Era a
última vez que apertava a mão do seu grande amigo! A 13 de Setembro de 1877,
sobre as dez horas da noite, Alexandre Herculano expirava na sua casa de Vale
de Lobos. Dias antes, José de Avelar-depois de haver observado o enfermo com
olho de médico-entrou no gabinete de trabalho do mestre. Deixou-se cair
desalentado sobre a cadeira onde Herculano se assentava para escrever e,
passando a mão pela testa, nesse momento húmida de suor, disse-me:
-Éramos treze, no dia dos anos dele!
O seu funesto prognóstico resumia-se nessas
palavras! De então para cá não tornei a sentar-me a mesa alguma com treze
pessoas.
Na
dúvida, caros leitores, mais vale prevenir como diz a minha Mulher que não
acredita em bruxas…
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
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