-VIDA DIFÍCIL.
O CONTRABANDO E O RACIONAMENTO DE AZEITE.
JOSÉ FERREIRA TEMPERO.
(Portugal no tempo da II Guerra)-
Fleming de OLiveira
A vida
em Portugal (e concretamente em Alcobaça), decorria com dificuldades,
mitigadas, é certo embora pouco, por o País não ter entrado na II Guerra.
Vamos
viajar um pouco por um tempo, onde ainda havia mercados de rua, pessoas que
compravam e vendiam galinhas, legumes e fruta, inseridos numa malha urbana que
se manteve ainda por alguns anos, sem grande demolição ou evolução. Assim,
entendemos ter interesse contribuir para contrariar, embora de uma forma
pessoal e como tal subjetiva, a perda de uma memória coletiva, perante a dobra
do tempo.
Na I
República, a vida também tinha sido bastante difícil, com carestia de todo o
tipo, desde logo de dinheiro. Mas até se dizia, paradoxalmente, que foi um
tempo (o das cédulas) em que em Alcobaça
se fazia dinheiro.
A
Câmara Municipal (Manuel da Silva Carolino, em 16 de março de 1942), mandou
afixar e distribuir profusamente um Edital, transcrevendo o texto de uma
exposição do oficial encarregado da Secção
contra o Açambarcamento e Especulação, do seguinte teor:
Os preços do feijão e grão, de largo
consumo, estão a subir sem justificação por virtude especialmente da perniciosa
influência de intermediários e compradores que expontaneamente oferecem preços
incomportáveis à produção. Torna-se necessário que as autoridades locais vigiem
tais indivíduos e os processem nos termos do Decreto nº 29.964 (artº 7º) por
alterarem os preços normais do artigo. Alguns deles não estão colectados, nem
compram por delegação de qualquer firma inscrita como grossista no Grémio dos
Armazenistas de Mercearia, o que agrava o delito. O crime de especulação é
punido com a multa de 500$00 a 100.000$00.
O
racionamento dos produtos essenciais, entre os quais o pão, existia em todo o
País. Era feito através de cupões individuais que conferiam direito a comprar
pequenas quantidades de bens alimentares de primeira necessidade, bem como ainda
o petróleo do fogareiro onde se cozinhava. O racionamento do pão era
especialmente gravoso e consistia por
vezes em um quarto de pão por pessoa, para todo o dia. O pão, assim, tinha de
ser comido com parcimónia. Pedacinho de pão que ao chão caísse era apanhado,
beijado e às vezes soprado, mas sempre comido, o que acabou por originar uma
tradição que, nalgumas famílias, se mantém. No campo, quando numa casa faltava
a broa, pedia-se uma emprestada à vizinha, devolvendo-lha após a cozedura
seguinte.
Mas, antes do sistema de racionamento ter sido
instituído, a situação era pior, pois formavam-se grandes filas de espera, junto
aos estabelecimentos. Havia pessoas que, quando viam uma dessas filas,
alinhavam logo nela, sem indagar sequer o que estavam ali a dar (como então se dizia), porque o quer
que fosse era batalha ganha, mesmo pagando caro.
O merceeiro tinha uma caderneta para família, onde
estavam registadas as pessoas que faziam parte do respetivo agregado. Era
mediante estes dados que cada família tinha direito a um certo número de senhas
e alimentos.
Ocorreram muitos casos em Alcobaça, mas não só, em que o
merceeiro, embora sujeitando-se a multa ou mesmo prisão, vendia na
candonga produtos aos amigos ou a quem
melhor os pudesse pagar.
Até o papel higiénico faltava.
No vila de Alcobaça, as senhas eram levantadas na Câmara
Municipal, onde funcionava a delegação da Intendência Geral de Abastecimentos,
sendo o Moita o respetivo encarregado, como recorda José A. Crespo. Para o
efeito, formavam-se filas, nem sempre muito calmas ou pacíficas.
Cada pessoa tinha direito, por exemplo, a 1dl. de azeite
ou 1 kg. de açúcar, por mês. O café, quando não faltava, era adoçado também com
rebuçado.
Nos meios rurais de Alcobaça utilizava-se também o arrobo como adoçante. Trata-se de mosto de uva branca, de preferência da casta Fernão
Pires. O mosto, é colocado numa panela grande a ferver, e vai-se mexendo bem,
até engrossar.
Depois, guardava-se para ser utilizado para barrar pão.
Mas nem toda a gente utilizava os mesmos procedimentos.
Ti Zé
da Costa Leão nasceu, nos Moleanos, por alturas de 1930. Desde muito novo,
percorreu a região de Leiria, quando trabalhava de sol a sol, sendo o almoço um
naco de broa, um pedaço de toucinho ou uma sardinha (quando a havia). Trabalhou
na agricultura desde os 9 anos, aprendeu a fazer sementeiras, a roçar mato, a
cozer fornadas de pão, ir por conta do patrão (que fazia o favor de lhe pagar alguma coisa) de madrugada para as filas do
racionamento, da mercearia e do pão, para obter meio quilo de açúcar, café e um
pão.
O
português sempre fez jus a uma boa refeição, pois gosta da boa cozinha e
comida. A verdade é que durante a primeira metade do século XX, a escassez de
alimentos obrigou muita gente a reduzir a alimentação.
Nos
tempos da II Guerra, graças ao racionamento, os géneros alimentícios, eram
vendidos por senhas de acordo com o agregado familiar. Nem os alimentos
produzidos em casa se podiam consumir à vontade, pois a produção devia ser manifestada. Se alguns alcobacenses das
aldeias não passavam tantas privações como outros, os citadinos, era porque
conseguiam esconder alguns produtos que cultivavam. Os mais endinheirados, não
produtores, adquiriam na candonga, bens menos correntes.
Na
década de quarenta muito português (rural como Ti Zé Leão ou operário), comia
frugalmente, meia sardinha ou um naco de toucinho por refeição. A carne de
porco, que muitos tinham de produção própria como Ti Zé Leão, era aproveitada
para tempero, dado o azeite ser raro ou caro. Óleos e margarinas nem pensar e a
manteiga era cara.
Galinha
ou coelho matava-se e comia-se ao Domingo em casa das famílias mais remediadas.
O caldo de galinha era dado como dieta aos doentes (e até se dizia que neste
caso que um deles estava doente).
Em
certos meios, quando uma mulher dava à luz, tinha o privilégio de comer à
vontade galinha durante algum tempo, como foi o caso da mãe dos filhos de Ti Zé
Leão, D. Adélia Gomes.
O
peixe mais frequente era a sardinha, chicharro ou o carapau, que vinha da
Nazaré e era vendido por todo o concelho.
Até à
década de 1960, a
população distribuía as refeições ao longo do dia mais ou menos do seguinte
modo, especialmente no campo:
-De
manhã cedo com o levantar tomava-se um café,
geralmente de cevada, que se fazia ao borralho, na chocolateira de cobre que aí permanecia toda a semana com as
borras, às quais todos os dias se acrescentava uma ou duas colheradas de pó.
Como complemento, homens e muitas mulheres matavam
o bicho com um copo de aguardente,
prática que Ti Zé não repudiava.
-Depois
pelas nove, comia-se o almoço que constava de sopa ou comida de garfo, como
batatas cozidas com cebola e conduto, se houvesse;
-Ao
meio dia era altura do jantar sopa de feijão, batata, couve e carne de porco,
acompanhada com um naco de broa;
-À
noite vinha a ceia (com a mulher e filhos), escorrido de batatas com bacalhau e
couves, temperadas com azeite, se o houvesse.
A
refeição do meio dia era comida no campo, onde por regra (e necessidade) a
família de Ti Zé trabalhava de manhã à noite.
Em
geral era apenas a D. Adélia quem ficava em casa durante o dia, para tratar de
um doente (a mãe durante alguns anos até falecer), e fazer a comida, logo pela
manhã, numa panela de ferro. Ao lado, na lareira fervia o panelão grande, da lavagem dos porcos. D. Adélia ia
atiçando afanosamente o lume de um lado para o outro, enquanto ainda cuidava
das galinhas, dos coelhos ou dos porcos. Chegado o meio dia, preparava o cesto
com a panela da sopa, broa e uma garrafa de vinho.
Durante
a refeição a garrafa do vinho rodava (muitas vezes sem copo) e todos bebiam,
incluindo as crianças, pois o vinho
ajudava a empurrar a comida e dava força. Chegava-se ao extremo de calar os
bebés quando choravam, com uma chucha de
açúcar molhado em vinho..., como recorda D. Adélia, embora reconhecendo, hoje,
que talvez não fosse um bom procedimento.
Leite
estava reservado as crianças de colo, aos doentes (como a mãe de D. Adélia) e
alguns outros idosos.
Bom,
os doces eram para os dias de festa. Os rebuçados, que vulgarmente se
encontravam à venda na mercearia da terra, cinco
por meio tostão e cada cor seu
paladar, serviam também para adoçar o café, o leite ou mesmo o chá.
O
bacalhau, esse fiel amigo, não
faltava em casa de Ti Zé, pendurado por um guita numa das paredes da casa, ao
lado da chaminé da lareira. Umas aparas de bacalhau cru e um naco de broa,
eram o melhor aperitivo ou a ajuda para beber um copo quando o pessoal, chegado
do campo, vinha derreado e com a barriga
a dar horas.
Em
terra de vinhedos (como a de Alcobaça), o vinho não podia faltar à mesa e se um
copo estimulava o apetite e tornava mais agradável o repasto, não deixava de
ser verdade que o vinho dava de comer a
um milhão de portugueses.
A embriaguez era, porém o estado normal de muita gente, especialmente ao
Domingo à tarde, e a origem de incontáveis males (físicos, morais e sociais)
que se projetaram de geração em geração.
Ti Zé
recorda casos de sua família, como um tio, um irmão e um cunhado com maleitas
graves. Beber um copito na adega, convidar um amigo para vir provar o tinto,
chamar o compadre para beber um branquinho, pagar uma rodada na taberna, estava
de acordo com o certo e habitual, tal
como brigar ao fechar da taberna, chegar a casa e dar uma tareia à mulher e
filhos, partir a loiça, andar pelas ruas a cambalear, seja a pé ou de bicicleta
até ficar caído na valeta, enfim gerar filhos com problemas.
Mas
nem toda a gente bebia vinho. Para esses, além da água da nascente (que era
muita e boa no poço de Ti Zé), havia o
pirolito, até que mais tarde apareceu com muito sucesso a laranjada Buçaco (mas sé em dias especiais).
Ti Zé
passou azeite da produção do avô, como contrabando, porque deveria ser
manifestado no lagar e a família só tinha direito a uns tantos litros por
cabeça durante um ano. Entrou pela primeira vez, aos 15 anos, numa furgonete de
um senhor da Benedita, para ir buscar pedra.
Na
tropa em Leiria, o sargento aconselhou-o a não ler certos livros, porque podia
ser incomodado. Teve um amigo preso pela PIDE, apelidado de comunista, por ter
denunciado as matreirices de um padre.
O pai,
tal como o avô, velhos camponeses, não tiveram direito a reforma. O País tinha
pedintes de mão estendida. Em Leiria, sabia-se que iam parar às prisões da
Polícia, porque oficialmente não podiam existir pobres.
A
crise provocada pela II Guerra foi vivida na zona da Serra (de Mira d’Aire e
Candeeiros) de forma intensa, com o Estado a racionar o azeite (um dos mais
preciosos produtos dos seus habitantes), o que conduziu ao fomento do seu
contrabando, como recorda D. Graciete, da Mendiga. A vida de pessoas da Serra
dependia em grande parte da produção do azeite já que, os terrenos são bastante
fracos para a agricultura (um homem nesse tempo dificilmente conseguia ganhar 10$00 por dia), mas bons
para a oliveira.
O
racionamento levou ao desenvolvimento do contrabando do azeite, como destaca a
viúva D. Inocência Maria, do Casal Ventoso, hoje com perto de noventa anos, em
bom estado de saúde, atividade que desenvolveu durante anos, sem nunca ter sido
apanhada, e que a ajudou alimentou a boca ao marido e três filhos rapazes.
As
famílias, escondiam as talhas no meio das terras, debaixo do soalho ou nos
currais, para depois venderem o azeite diretamente ou aos contrabandistas.
Inocência Maria, conhece histórias que não se importa de reviver, como a de um
almocreve da Mendiga, parente de seu marido, que transportava azeite para a
Nazaré numa furgonete. Escondia os odres dentro dos bancos e assim conseguia
iludir a fiscalização. Outros, escondiam o azeite dentro das enxergas de palha,
das mulas.
Mulas
carregadas com odres de azeite, atravessavam de noite a serra. Os destinos
principais eram a Nazaré, Marinha Grande, Leiria e Alcobaça. Saíam ao fim da
tarde, subiam a encosta da Bezerra, ou desciam até às Pedreiras. Os vendedores
escondiam as mulas, enquanto alguém se ia certificar se não havia guardas por
perto. Mas estes, por vezes, ouviam os passos dos animais e também se
escondiam, apanhando os negociantes. Era um trabalho duro e com riscos, como
reconhece D. Inocência. Por vezes, feria os pés, pois calçado era mau. Além
disso, havia os riscos, pois, quando a guarda atuava não se podia fazer nada. Ficávamos sem o azeite e, em alguns casos, sem
a mula e tínhamos de calar o bico. A alternativa, quando havia, passava por
subornar o guarda (o que não era raro), embora consigo nunca tenha acontecido.
O
contrabando de azeite era normalmente reservado aos homens, sendo o caso de D.
Inocência, se não único na zona, pelo menos raro. Entre os habitantes mais
idosos contam-se histórias de mulheres envolvidas no contrabando, escondendo o
azeite debaixo da roupa, fingindo estarem grávidas ou colocando os depósitos
entre as pernas.
Na
edição de 30 de novembro de 1946, O Mensageiro, de Leiria, relatou o caso de
uma mulher que transitava de comboio, com volumosos
seios que, embora bem ajustados ao corpo
da madama, tremiam, dançavam e moviam-se (...) e até ameaçavam desandar para as costas. Quando desabotoou a blusa
no posto de fiscalização instalado no comboio, a mulher mostrou duas grandes bexigas cheias de azeite. O
mesmo jornal conta, também, a história de uma ama que se sentou num comboio e
que, nos braços trazia um gorducho
menino, roliço, imbuído em mantilha de seda (...) um pimpolho que (a ama) amamentava aos seus úberes seios. O bebé
afinal, era um odre de azeite e os seios
eram bexigas cheias do dito.
Contava
(verdade, anedota?) José Ferreira Tempero que num acampamento de ciganos,
debaixo da ponte, perto da Casa do Pão-de-Ló, de Alfeizerão, numa fria noite de
Inverno, estando-se a fazer café, chegou-se à amarga conclusão, que não havia açúcar. O chefe dos ciganos, disse
à Maria para ir à mercearia comprar açúcar, ao que ela respondeu que não podia,
porque não tinha caderneta e senhas, como
é que ele me vai aviar isso? Mas o marido insistiu tanto, ela que convencesse o merceeiro, pelo se
decidiu a ir embora contrariada. O merceeiro, não quis fazer-lhe a desfeita,
pelo que lhe disse que arranjava o açúcar mas, ela tinha que se deslocar com ele a um reservado lá em cima.
Claro que ela percebeu a mensagem e quando regressou ao acampamento contou ao
marido as condições, então não queres ver
que aquele malandro me disse para ir lá acima, que me dava o açúcar?
-E tu o que respondeste?
-Então vim-me embora e estou a contar-te
isto.
Mas o
marido insistiu para que ela lá voltasse, pois café sem açúcar não presta para nada. Oh Maria vai lá… por favor.
Obedientemente
lá voltou à mercearia, tendo-lhe sido voltado a referir para o acompanhar lá
acima, para buscar o açúcar.
O
certo é que sem senhas e sem dinheiro, a Maria chegou ao acampamento com o
desejado açúcar, e como estava muito frio, depois de beber o café foi-se
aquecer junto ao lume, encostando-se cada vez mais à fogueira. O marido vendo-a
tão chegada ao lume, disse-lhe preocupado, cuidado
arreda-te lá para traz, olha que ainda
queimas a caderneta!!!.
Verdade
ou história de José Tempero?
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
Sem comentários:
Enviar um comentário